Revolução Bolivariana em xeque
Morte de Chávez interrompe um projeto político centrado no “socialismo do século 21”. Para especialistas, Maduro terá o desafio de manter a união dos governistas a fim de garantir a sobrevivência da ideologia
Em seus planos, Hugo Chávez levaria 30 anos para concluir o projeto que sonhou para a Venezuela e para a América Latina. Sua morte interrompeu a jornada no meio do caminho e lançou incertezas sobre o futuro do chavismo e da Revolução Bolivariana, que em sua gênese se confunde com os ideais de seu próprio fundador. Já antevendo as preocupações com seu legado, Chávez começou a preparar o país e aliados para dar continuidade ao chamado “socialismo do século 21”.
O vice-presidente, Nicolás Maduro, foi nomeado não apenas seu herdeiro político, como o homem designado a conduzir o bolivarianismo para a era pós-Chávez. Na opinião de analistas, o ex-presidente tinha plena consciência disso. No entanto, o curso da história não se restringirá à capacidade de liderança de Maduro e, sim, a amplas condições político-econômicas da Venezuela a partir de agora.
Nos 14 anos de Revolução Bolivariana, Chávez mudou a Constituição, o fuso horário, o brasão e até o nome do país, que passou a se chamar República Bolivariana da Venezuela. Na economia, deixou profundas marcas, como a nacionalização de setores e os projetos sociais patrocinados pela riqueza nacional, o petróleo. Ao “chavismo sem Chávez” caberá encontrar uma forma de sobreviver em meio a tantas incertezas.
Na avaliação do coordenador do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Luiz Fernando Ayerbe, a revolução sempre esteve muito vinculada à liderança do coronel, desde suas eleições e a chegada ao poder, em 1998, e aos recursos econômicos da Venezuela.
Segundo Ayerbe, com a morte de Chávez, não se pode premeditar o fim da Revolução Bolivariana. Mas a questão que se coloca é se Maduro, apesar de compartilhar os mesmos ideais, terá a liderança e o cenário econômico que lhe permitam sustentar as políticas e as iniciativas do presidente morto. “A Revolução Bolivariana colocou em pauta a utilização dos recursos, a riqueza petroleira venezuelana em benefício da maioria da população, com políticas sociais que renderam a Chávez a grande popularidade que o acompanhou até sua morte”, disse.
Opinião semelhante manifestou o cientista político da Universidade Simón Bolívar Tony De Viveiros, que aponta o desafio da sucessão desenhada no país, nesse momento. “ O chavismo, ao longo desses 14 anos, soube construir uma identidade própria, ao redor da figura de Chávez e de sua liderança carismática, que resvalava quase na fé religiosa, na qual se aceitavam delineamentos políticos, sem se importar se eram inverossímeis ou não”, opinou.
Para Viveiros, a necessidade de sobreviver politicamente fará com que os chavistas se mantenham coesos, pelo menos a curto prazo. À medida que o tempo passar, as diferenças entre as distintas facções se tornarão mais evidentes. De um lado, segundo o cientista político, estará o que chamou de “esquerda exógena”, composta por membros mais próximos a Havana. Do outro, as da “direita endógena”, na qual figuram os militares aposentados aliados dos golpistas de 4 de fevereiro de 1992. “Ambas as facções se proclamarão como as verdadeiras herdeiras do legado político de Chávez.”
Dificuldades
Como um complicador a mais, José Vicente Carrasquero, também professor da Universidad Simón Bolívar e da Universidad Católica Andrés Bello, considera que a morte do presidente ocorre em um momento em que seus projetos políticos, ligados ao socialismo do século 21, já começavam a passar por dificuldade. “A qualidade de vida dos venezuelanos mostra sinais de deterioração. Sentem-se a falta da supervisão do presidente e sua gestão de governo. O motor principal de um projeto político deixa de existir e, agora, a tendência é que ele enfrente maiores dificuldades para seguir avançando”, avaliou. O futuro do chavismo, na sua opinião, dependerá das lideranças venezuelanas superarem as divisões e começarem a reinstitucionalizar o país.
O projeto de Hugo Chávez não se restringiu às fronteiras venezuelanas. Inspirado em um sonho de integração latino-americana do líder Simón Bolívar, Chávez encabeçou uma política externa regional com uma perspectiva mais nacionalista. Principal reflexo dessa conduta, como explicou Ayerbe, foi a criação da Alternativa Bolivariana para a América Latina (Alba), extremamente crítica aos Estados Unidos. Em nome dessa política regional, países como Nicarágua, Cuba, Bolívia e Equador se beneficiaram amplamente da ajuda dos petrodólares venezuelanos. “Chávez imprimiu e reforçou essa visão de uma revolução que fortalecesse a América Latina e a ascensão das populações mais pobres. Isso foi uma característica sua”, afirmou Ayerbe.
Três perguntas para Luiz Fernando Ayerbe
Como o ideal bolivariano será afetado na região?
Em termos de ideais, o bolivarianismo vai permanecer. Mas a projeção da Venezuela na América Latina é algo que já vinha se notando uma retração, mesmo com Hugo Chávez no poder. A liderança chavista foi perdendo força por conta de outros aspectos, como o papel do Brasil na região, por exemplo. Não será algo que começará a desaparecer, mas vai perder projeção.
E qual foi seu principal legado para a América Latina?
A questão mais importante está relacionada à Alba (Aliança Bolivariana para as Américas), que instituiu um modelo de integração baseado na solidariedade, na troca daquilo que cada país tem em termos de recursos. A Venezuela, o petróleo, Cuba, recursos humanos, entre outros. Esse aspecto da solidariedade como fator de integração econômica é muito importante.
Que associação poderia se fazer entre Simón Bolívar e Hugo Chávez?
A revolução, na percepção de Simón Bolívar, significava o estabelecimento de um projeto continental, o que se percebia também em outros líderes regionais, como Chávez. Mas o ex-presidente venezuelano fortaleceu, com sua liderança, além do ideário bolivariano, valores como o anti-imperialismo, a distribuição de riquezas e a preocupação com a união latino-americana.
*Fonte: Correio Braziliense de 6 de março de 2013