A Dívida e a Saúde Pública
Publicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 17/04/2013
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A Auditoria Constitucional da Dívida e o Financiamento do Direito à Saúde no Brasil nos 25 anos da Constituição Brasileira1
Por Jarbas Ricardo Almeida Cunha2
Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988 – resultado de ampla mobilização da sociedade após duas décadas de regime ditatorial – deu guarida a uma série de direitos fundamentais sociais com o intuito de legitimar a democracia brasileira com base na justiça social.
Entre esses direitos elencados pela Lei Maior do Estado brasileiro destaca-se o direito à saúde, fruto de uma intensa luta propositiva realizada pelo Movimento Sanitário que influenciou a constitucionalização e consequente universalização deste importante direito social.
Mas, em contrapartida à denominada “Constituição Cidadã”, a década posterior à sua promulgação foi marcada pelo advento do neoliberalismo quando os governos brasileiros ratificaram pactos pelo ajuste fiscal e prioridade do pagamento da dívida pública – consubstanciados em acordos com organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) – relegando a segundo plano a efetivação de políticas públicas para a concretização dos direitos sociais.
Tal contradição – entre o surgimento de uma Constituição que normatiza direitos sociais e um contexto a posteriori que flexibiliza o protagonismo do Estado – reflete na questão a ser discutida neste artigo: como a auditoria da dívida pública defendida pela Constituição brasileira pode influenciar o financiamento do direito fundamental à saúde? Como analisar esta questão com base nos embates ideológicos da conjuntura atual?
1 A Auditoria Constitucional da Dívida
Nos últimos anos o Governo brasileiro tem utilizado a maior parte de seu orçamento para o pagamento de juros e amortizações da dívida, sacrificando, em contrapartida, os investimentos sociais em educação, saúde, cultura, habitação, saneamento, dentre outros. Como demonstra o gráfico da figura 1 elaborado pela Auditoria Cidadã da Dívida sobre o Orçamento Geral da União (OGU) de 2012.
Figura 1: Orçamento Geral da União de 2012, por setor
(executado até 31/12/2012 – Total: R$ 1,712 Trilhão)
E, corroborando esse argumento, dados da Auditoria Cidadã da Dívida apontam que até o dia 01 de abril de 2013 a dívida já consumiu R$ 325 bilhões, o que corresponde a 59 % do gasto federal.
Nossa dívida total (interna e externa) ultrapassa os mais de 3 trilhões de reais (corresponde a 78% do PIB) ao custo de uma elevada carga tributária regressiva – que taxa mais o consumo e a produção do que a renda e o patrimônio, ou seja, taxa mais os pobres e a classe média do que os ricos – e com base principalmente na perversa equação do superávit primário, câmbio flutuante, metas de inflação e altas taxas de juros instrumentalizados pela autonomia operacional do Banco Central do Brasil transformando nosso país em “plataforma de valorização financeira internacional” (PAULANI, 2008, p.9) para júbilo dos principais credores – especuladores e banqueiros.
Com base nesses dados e argumentos apresentados e na conjuntura de uma forte crise econômica mundial é necessário a efetivação da auditoria da dívida conforme nossa Constituição.
Antes de analisarmos a atual Constituição elaboramos um pequeno histórico da dívida pública e suas auditorias e comissões que ousaram contestá-la denunciando irregularidades, ilegalidades e fraudes que contribuíram para o desenvolvimento do tema pesquisado.
1.1 A Auditoria da Dívida no Governo Vargas
Na crise econômica de 1929 iniciada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque o Brasil foi atingido por problemas no balanço de pagamentos e na política cambial da década de 1930, o que fez com que o primeiro Governo Vargas (1930-45) realizasse a primeira, e até hoje a única, auditoria oficial da dívida externa (GONÇALVES, 2003, p. 114).
Getúlio Vargas dividiu a auditoria em seis fases, na primeira fase iniciada em 1931 ele suspendeu a dívida para avaliação das irregularidades e abusos dos credores; na segunda, também em 1931, foi realizada a renegociação da dívida externa; na terceira, em 1934, foram reduzidos os juros e adiadas as amortizações; na quarta fase, em 1937, houve o controle cambial sobre a importação de bens e serviços e remessas de lucros e dividendos; na quinta, em 1940, foi respeitada a capacidade de pagamento do Brasil em relação à sua balança comercial e, na última fase, em 1943, foram reduzidos, de forma cabal, os juros e amortizações (GONÇALVES, 2003, p.117).
O Governo Vargas reduziu consideravelmente a dívida externa comprovando irregularidades e cláusulas abusivas que constituíam crimes de lesa-pátria, realizando, para isso, uma auditoria da dívida pública brasileira reafirmando os compromissos soberanos do nosso país.
1.2 As Comissões Parlamentares da Década de 1980
Depois do Governo Vargas, ocorre uma ascendência da dívida no Brasil com o Governo Kubitschek (1955-60) que justifica o “desenvolvimentismo” e a tentativa de consolidação da substituição das importações e a construção de Brasília até o auge do endividamento com a ditadura militar (1964-85) durante o denominado “Milagre Econômico” do Governo Médici e o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do Governo Geisel. A dívida, que antes da ditadura era de US$ 2,5 bilhões, passa para US$ 52,8 bilhões, de acordo com dados da Auditoria Cidadã da Dívida.3
O desenvolvimentismo conservador (BACELAR; BENJAMIN, 1995) deste período ocorre com empréstimos a juros flutuantes realizados por credores internacionais por meio de organismos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial que portam suas listas de recomendações como arrocho fiscal, privatização de empresas estratégicas e radicalização da abertura para o capital financeiro internacional (TAVARES, 1998).
O Governo Sarney (1985-90) decreta moratória por causa da crise iniciada com os choques do petróleo de 1973 e 1979, altos índices de inflação, crise do México e aumento unilateral da alta de juros provocada pelos Estados Unidos, o que resultou no dobro da dívida brasileira passando de US$ 52,8 bilhões para US$ 105,2 bilhões (FATTORELLI, 2003).
Diante dessa conjuntura da década de 1980, em um momento de ascenso de cidadania depois de mais de 20 anos de ditadura, grupos organizados da sociedade civil exigem uma auditoria da dívida que demonstre de forma transparente quem são os credores, quais irregularidades, quais critérios regeram os contratos com organismos internacionais, dentre outras questões.
Foram criadas duas comissões com o intuito de auditar a dívida da época, nos anos de 1983 e de 1987. A primeira foi uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados instituída pelo Requerimento nº 8/83, instalada em 16 de agosto de 1983 com a tarefa de apurar as causas e consequencias da dívida brasileira e o acordo com o FMI e a segunda foi uma Comissão Especial do Senado Federal para a Dívida Externa, instituída pelo Requerimento nº 17/87, instalada em 14 de abril de 1987 com a tarefa de examinar a questão da dívida externa brasileira e avaliar as razões que levaram o Governo a suspender o pagamento dos encargos financeiros dela decorrentes, nos planos externo e interno.
Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, o resultado dessas duas comissões instaladas antes da Constituição de 1988 revelou que não houve transparência no endividamento contratado e autorizado pelo Banco Central, que realmente houve alta unilateral das taxas de juros por bancos privados de Nova Iorque e Londres, cláusulas abusivas, falta de tradução dos contratos, renegociação e pagamento da dívida sem respeitar o valor de mercado, foro para dirimir controvérsias em Nova Iorque, entre outras irregularidades que flexibilizaram a soberania do Estado brasileiro diminuindo sua margem de manobra no controle de capitais.
Para que o resultado dessas duas comissões sobre a dívida não estagnasse no Congresso houve uma pressão social na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 para que a auditoria constasse no texto da nova Constituição, sendo ratificada no artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição promulgada em 1988.
1.3 A Constitucionalização da Auditoria da Dívida e seus Desdobramentos Pós-Constituicão
A Constituição brasileira, que completará 25 anos neste ano de 2013, ratificou um pacto civilizatório entre vários matizes ideológicos que surgiram numa conjuntura de redemocratização e de ascenso de lutas sociais amplamente discutidos e votados pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88.
Como relata Bonavides (2010) a Constituição não é somente a Lei Maior do Estado mas também um Projeto de Nação que deve ser implementado por meio de políticas públicas que efetivem tanto os direitos civis e políticos como os direitos econômicos, sociais e culturais.
Sobre a auditoria da dívida, esta foi constitucionalizada no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), tendo o mesmo valor de norma jurídica do texto permanente da Constituição (BARROSO, 2007), devendo ser cumprida conforme os ditames do art. 26 do ADCT:
No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro. (grifo do autor)
Respeitando o artigo mencionado, foi instalada uma Comissão Parlamentar Mista (envolvendo Câmara e Senado) em 11 de abril de 1989 com o objetivo de examinar analítica e pericialmente os atos e fatos geradores do endividamento brasileiro para cumprir a missão constitucional – art. 26 do ADCT.
Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, o relatório parcial foi aprovado em 09 de agosto de 1989 e continha as seguintes conclusões: inconstitucionalidade dos novos contratos da dívida já que não eram submetidos ao Senado Federal, cláusulas abusivas, renegociação de dívidas prescritas, entre outras.
Apesar da aprovação do relatório parcial, o parecer final que ratificava as irregularidades constatadas não foi votado por causa do lobby da bancada conservadora do Congresso Nacional, inviabilizando, desta forma, a aplicação constitucional da auditoria da dívida.
Na década de 1990, com os Governos Collor (1990-92) e Fernando Henrique (1994-2002), a dívida brasileira aumentou em mais de 100 bilhões de dólares, resultado de acordos sem nenhum tipo de regulação com o Tesouro Estadounidense, por meio de seu secretário Nicholas Brady (iniciativas Brady) que ressuscitou dívidas consideradas pagas e pela implementação de mecanismos liberalizantes da economia como a insurgência de forma mais radicalizada de capitais de curto prazo (hot money) com a finalidade de especular, dados os vantajosos juros dos títulos brasileiros, e com a privatização de setores públicos, inclusive a privatização de credores da dívida quitada com dinheiro público (GONÇALVES, POMAR, 2001).
Com as crises econômicas asiática (1997) e russa (1998) o Brasil acorda com o FMI em 1999 o tripé da política econômica conservadora, vigente até o presente momento: 1) o esforço para construir um forte superávit primário através de aumentos recordes de arrecadação tributária e corte nos investimentos sociais, por meio, por exemplo, da Desvinculação de Receitas da União (DRU); 2) o câmbio flutuante para que o capital financeiro possa circular sem nenhum tipo de controle ou mínima taxação do Estado e; 3) as mais altas taxas de juros combinadas com metas de inflação, comandadas pela independência operacional do Banco Central lastreada por leis de ajuste como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (PAULANI, 2008).
Desde então, o Orçamento Geral da União (OGU) repassa de 30 a quase 50 % dos recursos para o pagamento de juros e amortizações da dívida, incorrendo em crime de lesa-pátria já que não há respeito à auditoria constitucional da dívida, nem à decisão do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) que julgou ilegal o pagamento de juros sobre juros (anatocismo).
Depois do descenso das lutas sociais nos anos 1990, nos anos 2000 há uma tentativa de rearticulação do movimento pela Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil com a realização de um plebiscito não oficial sobre a dívida em setembro de 2000 organizado em 3.444 municípios por organizações da sociedade civil, como igrejas, sindicatos e movimentos sociais.
O plebiscito que teve a participação de 6.030.329 (seis milhões, trinta mil e trezentos e vinte nove) cidadãos, resultou em 95% dos votos contrários ao pagamento da dívida, a favor da auditoria prevista na Constituição, pela descontinuidade do acordo com o FMI e paralisação da destinação de recursos orçamentários aos especuladores.
Desde 2001 está sendo organizado o movimento social pela Auditoria Cidadã da Dívida, formado por intelectuais, ativistas e militantes da causa no Brasil que lutam pela efetivação da Constituição.
Em 2004, por meio da Auditoria Cidadã da Dívida, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), respaldada por seu Conselho Federal, impetrou perante o STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 59 para que o Congresso Nacional seja acionado para o cumprimento do art. 26 do ADCT.
E, no ano de 2009, também por uma reivindicação da Auditoria Cidadã da Dívida, foi instalada mais uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados para averiguar a situação da dívida no Brasil e seu relatório chegou à mesma conclusão da manutenção das irregularidades detectadas pelas comissões anteriores e do desrespeito às normas da Constituição Federativa do Brasil, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e do Protocolo de San Salvador em matéria de direitos sociais, ambos ratificados pelo Estado brasileiro (RELATÓRIO FINAL, 2010, p.4). Este relatório foi acolhido pelo Ministério Público em 18 de maio de 2010 para dar início ao processo de investigação sobre prováveis ilegalidades cometidas por contratos que oneram a população brasileira4.
Portanto, torna-se urgente a auditoria da dívida para que o Estado brasileiro possa implementar de forma efetiva as políticas públicas necessárias a uma sociedade mais justa e igualitária em conformidade com nossa Constituição e para que se proteja de eventuais efeitos negativos provocados pela crise econômica mundial.
2 O Financiamento da Saúde
O financiamento da saúde no Brasil, antes e depois da Constituição de 1988, foi marcado em vários momentos pela ausência de estabilidade e segurança jurídico-econômica evidenciando a fragilidade politico-institucional para resolver esta importante questão.
Antes da Constituição de 1988, somente a previdência social e o orçamento fiscal eram fontes de financiamento público da saúde. Os recusos previdenciários eram financiados por uma minoria da população que estava inserida no mercado formal de trabalho e que, em contrapartida, recebia assistência médico-hospitalar; e os recursos fiscais eram direcionados para uma concepção geral de saúde pública, como vacinação, vigilância e controle de doenças. A maioria da população, não respaldada por um arcabouço formal trabalhista, era atendida por um conjunto de associações filantrópicas de saúde (VIANNA, 2005).
Com a promulgação de nossa Carta Política de 1988, a saúde passou a integrar a Seguridade Social (art. 194), juntamente com a previdência e assistência social devendo ser financiada por recursos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e contribuições sociais (art. 195). Neste ponto inicial de nossa discussão, que envolve a seguridade social, o primeiro destaque surge com o art. 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição:
Art. 55. Até que seja aprovada a lei de diretrizes orçamentárias, trinta por cento, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o seguro-desemprego, serão destinados ao setor de saúde(grifo do autor).
Este artigo nunca chegou a ser efetivado, prejudicando o financiamento da saúde nos anos iniciais pós-Constituição. O percentual estipulado (30%) não foi cumprido nos anos de 1990 e 1991 e no ano de 1992 ele só foi cumprido porque foram contabilizados como ações de saúde, os gastos em recursos humanos, merenda escolar, obras urbanas , dentre outros, descaracterizando, desta forma, o artigo em tela (SERVO et al., 2011).
No ano de 1993 a disputa entre os recursos da Saúde e da Previdência – prevista por estudiosos como Menicucci (2009) e Vianna (2005) por causa da crise previdenciária – acirrou-se resultando no fim da solidariedade das contribuições previdenciárias para o orçamento da saúde gerando inclusive empréstimos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ao Ministério da Saúde, demonstrando que o financiamento da saúde precisava de um imposto específico sobre a matéria (SERVO et al., 2011).
Recorremos novamente ao ADCT da Constituição para analisarmos o imposto provisório criado para aumentar o financiamento da saúde, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), conforme Emenda Constitucional (EC) nº 12/19965:
Art. 74 – A União poderá instituir contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.
§ 3º – O produto da arrecadação da contribuição de que trata este artigo será destinado integralmente ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde.
As contribuições sociais como COFINS6, CSLL7 e CPMF foram responsáveis por uma média de 70% do financiamento da saúde no período de 1997 até 2007 sendo que a CPMF sozinha era responsável por 1/3 destes recursos, conseguindo estabilizar momentaneamente os recursos da saúde. (SERVO et al., 2011).
A CPMF, por ter suscitado uma discussão sobre sua provisoriedade, sempre foi alvo de polêmicas em torno da carga tributária e sobre sua efetivadade na aplicação dos recursos. A CPMF, conforme Salvador (2007), “é um desses tributos regressivos, pois ao incidir ao longo da cadeia produtiva, é passível de ser transferida a terceiros; em outras palavras, para os preços dos produtos adquiridos pelos consumidores.” Mais uma vez evidenciando a injusta tributação brasileira, onde quem financia o Sistema Único de Saúde (SUS) são as classes menos favorecidas principalmente por meio do consumo.
Nos dez anos de sua vigência a CPMF também sofreu a ingerência da Desvinculação das Receitas da União (DRU), instrumento utilizado pelo neoliberalismo brasileiro da década de 1990 depois dos acordos com o FMI e ainda vigente8. No caso específico da CPMF, de 1997 a 2006, 18% da arrecadação deste tributo foi desviado via DRU para valorização do capital financeiro (SALVADOR, 2010).
Com a extinção da CPMF em 2007, o Governo e o Movimento Sanitário reiniciaram a discussão sobre a regulamentação da Emenda Constitucional (EC) 29/2000 que assegurava a participação dos três níveis de Governo no financiamento do SUS a partir da definição de um percentual mínimo de recursos por ano9.
A regulamentação realizada no início de 2012 consolidou os investimentos da União, Estados e Municípios. Os Estados continuam obrigados a investir, no mínimo, 12% da arrecadação dos impostos, enquanto os Municípios, 15%. O Distrito Federal investirá de 12 a 15%, conforme a classificação da fonte da receita em estadual ou distrital10. Mas a maior frustração do Movimento Sanitário em torno desta regulamentação foi o veto presidencial aos 10% da Receita Corrente Bruta (RCB) da União11, o que dificulta a consolidação do financiamento público da saúde universal e integral de acordo com nossa Constituição12.
Destacamos também que o Brasil – de acordo com dados de várias instituições e organismos13 – é o único país do mundo de sistema universal onde os investimentos privados superam os investimentos públicos. Dados do IBGE (2009) estimam que o investimento em saúde (tanto público quanto privado) é de aproximadamente 8,4% do Produto Interno Bruto (PIB), ficando abaixo dos Estados Unidos que investem 15%, mas mais próximo dos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que possuem sistema universal como Inglaterra (8,4%), Espanha (8,5%), Austrália (8,98%) e Canadá (10,1%)14.
O problema do Brasil é que o investimento público é bem abaixo do privado, enquanto o primeiro está em torno de 45%, o segundo alcança 55%15, fato inédito em país com sistema universal de saúde e que já alcançou a posição de sexta maior economia do mundo16 (OMS, 2008).
E o investimento público em relação ao PIB tem a média de apenas 4%, sendo 1,7% da União e o restante dividido entre Estados e Municípios, ainda com o agravante do recente corte realizado pelo Governo Dilma de R$ 5 bilhões no orçamento da saúde (de R$ 77 para R$ 72 bilhões) para cumprir o pagamento da dívida pública evidenciando a falta de comprometimento com o direito humano fundamental à saúde de acordo com o Sistema Único de Saúde (SUS) universal, integral e gratuito conforme a Constituição Federal (MENDES, 2012).
A saúde brasileira sempre esteve em um processo de subfinanciamento, necessitando de mais recursos para, além da efetivação constitucional, enfrentar os desafios do futuro como as mudanças no quadro demográfico e epidemiológico, as inovações tecnológicas e a melhor distribuição de recursos.
Portanto, precisamos de uma maior conscientização das três esferas de poder e da sociedade civil organizada no sentido de elaborar soluções para o aumento do orçamento da saúde no Brasil como, por exemplo, a alternativa da Auditoria Constitucional da Dívida.
3 A Auditoria Constitucional da Dívida como Alternativa para o Aumento do Financiamento da Saúde
Há algumas alternativas que estão sendo debatidas pela sociedade brasileira para aumentar o orçamento da saúde: tributação sobre grandes fortunas, reforma tributária progressiva, criação de um novo imposto como a Contribuição Social para a Saúde (CSS), taxação sobre produtos nocivos (álcool e tabaco), dentre outras. Então por que debater a auditoria da dívida como solução para a questão do financiamento da saúde? Não seria uma proposta muito radical sem a devida correlação de forças favorável para sua implementação?
Introduzimos este polêmico tema, com base em três argumentos, como proposta viável para resolver o financiamento da saúde com a utilização dos recursos financeiros provenientes da realização de uma auditoria da dívida pública brasileira.
3.1 – A Teoria da Supremacia Constitucional
A Teoria da Supremacia Constitucional foi elaborada por Kelsen (2009) defendendo que o ordenamento jurídico seria uma construção escalonada de normas onde a Constituição seria a norma superior fundamental, por isto, a Lei Fundamental. Seus princípios, regras, direitos, deveres e garantias devem ser respeitados por todas as outras normas do ordenamento jurídico sob o risco de perder sua legitimidade, causar insegurança jurídica e demonstrar insinceridade normativa, ocasionando uma frustração constitucional (BARROSO, 2007).
Tanto a auditoria da dívida elencada no art. 26 das Disposições Transitórias quanto o direito à saúde (art.6º e 196/200 da CF) são normas constitucionais fundamentais com força vinculativa e eficácia evidenciando sua imediata implementação.
A auditoria da dívida é preceito fundamental pois a análise completa da dívida, constatando irregularidades ou abusos e a consequente responsabilização daqueles que a promoveram, de acordo com o art. 26 do ADCT, vincula-se ao fundamento constitucional da soberania e dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, CF), do objetivo fundamental da erradicação da pobreza (art. 3º, III, CF) e do princípio republicano relacionado ao adequado trato da coisa pública pelos agentes do Estado (ADPF 59/2004), caracterizando, desta forma, a defesa dos fundamentos e objetivos fundamentais da República (MENDES, 2011).
De acordo com a Teoria da Supremacia Constitucional advogamos que os recursos advindos da auditoria da dívida devem ser utilizados para a efetivação do direito à saúde por este ser 1)universal; 2) depender de políticas sociais e econômicas para sua efetivação e 3) por sua relevância pública.
Com relação ao primeiro ponto, a saúde foi inserida no sistema híbrido da Seguridade Social brasileira (art.194, CF), híbrido pois conjuga em seu núcleo essencial direitos derivados e dependentes do trabalho (previdência), direitos seletivos (assistência) e direitos de caráter universal (saúde) (BOSCHETTI, 2003). Portanto, dentre os direitos que compõem a Seguridade Social, somente a saúde tem a característica de ser universal, devendo por isso ser prioritária na destinação de recursos financeiros.
De acordo com o segundo ponto de análise, conforme o art. 196 da Constituição:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (grifo do autor).
Uma vez realizada a auditoria da dívida pública pelo Congresso Nacional para dar fim a esta omissão legislativa, o Estado brasileiro, com base no artigo mencionado, deve realocar os recursos auditados para o orçamento sanitário já que este ato constitucional evidencia a interligação entre política social (direito universal e igualitário à saúde) com política econômica (auditoria da dívida), ratificando o artigo 196 da Carta Magna.
O terceiro e último ponto de argumentação referente à Teoria da Supremacia Constitucional refere-se à relevância pública das ações e serviços de saúde (art. 197, CF). Se os serviços públicos são aqueles serviços que se destinam a assegurar o bem do povo, a eliminar as carências individuais e regionais, o que também reflete o comprometimento com a concretização da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito, os serviços e ações de saúde foram constitucionalmente erigidos a serviços muito mais do que públicos, mas de relevância pública.
Araújo (2004) conceitua a característica de relevância pública como todos os serviços necessários para a realização dos objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º e 3º, CF), como o princípio da dignidade da pessoa humana e a erradicação da pobreza. E Weichert (2007) sublinha que os serviços de relevância pública tem prioridade na destinação de recursos sobre outros serviços que não tenham esta característica, portanto, corroboramos que o orçamento sanitário deve ser priorizado com o envio dos recursos financeiros da auditoria por sua característica de serviço público relevante.
3.2 Exemplos Internacionais – Equador, Argentina e Grécia
Os adversários da auditoria da dívida argumentam que tal instrumento pode causar pânico no mercado financeiro internacional, gerando caos na política econômica e consequente isolamento do país na geopolítica internacional. Veremos que este argumento pode ser contraposto com o exemplos internacionais que citamos.
3.2.1 Equador
Dos três países que analisamos sobre suas ações em torno da auditoria da dívida e o financiamento da saúde, somente o Equador realizou uma auditoria oficial por meio do atual Governo do presidente Rafael Correa.
Em 2007, Correa editou o Decreto 472 criando a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (CAIC) com a tarefa de auditar oficialmente a dívida de seu país17. Os objetivos principais eram analisar a situação real da dívida externa e interna, pública e privada e seus impactos econômicos e sociais (FATORELLI, 2011).
O relatório final evidenciou irregularidades e ilegalidades baseadas em documentos jurídicos acordados com organismos multilaterais e credores internacionais. Dentre essas destacam-se a transformação da dívida externa em interna, contratual em bônus, privada em pública e uma espécie de reciclagem de dívidas vencidas ou por vencer, desrespeitando a soberania do Equador (FATORELLI, 2011).
Em 2008, o Governo suspendeu os pagamentos aos detentores dos títulos da dívida pública e enviou o relatório final para organizações e tribunais jurídicos internacionais, tendo a argumentação pela auditoria respaldada em nível internacional. A proposta final do Governo equatoriano, em 2009, foi acatar entre 25 e 30% do valor dos títulos para pagamento, sendo aceita por 95% dos credores, dadas as fundamentadas provas jurídicas que continham no relatório final (FATORELLI, 2011).
Com os recursos obtidos com a auditoria da dívida, o Governo equatoriano, de acordo com a Secretaria Nacional de Planejamento e Desenvolvimento (SENPLADES), aumentou o investimento em saúde de US$ 437 milhões para US$ 3,4 bilhões e, somente em 2010, foram reformados e/ou criados 497 hospitais e centros de saúde, e foram entregues para a população 155 ambulâncias, 19 tomógrafos, 35 mamógrafos e 6 unidades cirúrgicas.
Óbvio que o sistema de saúde equatoriano também passa por várias contradições e problemas, com políticas públicas focalizadas, terceirizações e desigualdades no atendimento dos cidadãos, mas a auditoria realizada pelo Governo foi um passo importante para o início da melhoria nas estruturas sanitárias do país.
3.2.2 Argentina
Na Argentina, a ilegalidade do pagamento da dívida foi comprovada com o inquérito judicial realizado pelo jornalista e ativista dos direitos humanos Alejandro Olmos, ainda durante a ditadura (1982), que tramitou durante dezoito anos tendo a sentença expedida no ano 2000 pelo juiz Ballestero que evidenciou “a existência de um vínculo explícito entre a dívida externa, a entrada de capital externo de curto prazo e altas taxas de juros no mercado interno” (Causa 14.467)18.
O juiz federal “demonstrou a existência de uma conivência entre a ditadura argentina, o FMI e os bancos privados internacionais” (DIAZ, 2003, p.167) relatando ilegalidades como conflitos de interesses por meio da atuação de funcionários públicos, criação artificial de dívidas sem contrapartida, ausência de registro contábil no Banco Central da Argentina, o que propiciou que os contratos e montantes da dívida fossem determinados pelos próprios credores da dívida, dentre outras fraudes (KEENE, 2003).
A Sentença Olmos, como é conhecida, transformou-se em exemplo de Direito Internacional ratificando conceitos como Dívida Odiosa que tem como objetivo “submeter um povo à dominação colonial” (DIAZ, 2003, p.161); Insolvência Soberana que é um mecanismo de arbitragem e mediação da dívida realizada com participação popular (RAFFER, 2003); e Inexistência do Princípio de Transmissão de Dívidas, por exemplo, de um regime ditatorial para um regime democrático (DIAZ, 2003).
Apesar dessa sentença, o Governo argentino (principalmente no período Menem) continuou acordando com o FMI, priorizando o pagamento de juros da dívida pública, realizando intensos planos de privatização e fortalecendo o capital financeiro internacional, o que desencadeou a maior crise econômica da história da Argentina em 1999/2002.
Apesar do alto investimento total em saúde se comparado com outros países da região, o investimento especificamente público da saúde argentina está em torno de 2% do PIB, ou seja, distante dos 5% recomendados pela OMS. Tendo em vista este problema, o Parlamento argentino está tentando instaurar uma Comssão Parlamentar (como já havia acontecido em 1984) para auditar a dívida para que recursos sejam alocados no orçamento sanitário, e em outros orçamentos sociais (LUQUE, 2011).
3.2.3 Grécia
Com a crise econômica mundial iniciada em 2007/2008 nos Estados Unidos e alastrada na Europa nos anos seguintes atingindo fortemente países denominados pejorativamente de PIIGS19 (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha), o exemplo mais expressivo da gravidade desta situação é a do país helênico.
A Grécia vem sofrendo as consequências da crise econômica com cortes de verbas nos serviços públicos de saúde, educação, segurança, redução de salários, flexibilização das leis trabalhistas, limitação do direito ao lazer (com suspensão até de feriados), privatização de empresas e serviços estratégicos e contínuos acordos com o FMI, o Banco Central Europeu (BCE) e União Europeia (UE), tomando empréstimos a juros altos sem uma relevante contrapartida que capacite o país a ter uma razoável margem de manobra sobre sua política econômica (FATORELLI, 2011).
Os movimentos sociais gregos que protestam nas ruas contra a situação atual do país colocam em destaque a exigência de uma auditora da dívida que tenha como período de análise maio de 2010/2012, defendendo seu caráter de Dívida Ilegítima (que tem conceito próximo ao de Dívida Odiosa) porque: 1) acordada sem o consentimento do povo; 2) o gasto dos recursos financeiros contrariou os interesses da Nação e; 3) os credores e detentores dos títulos da dívida sabiam dos dois aspectos anteriores20 (SAACK, 1927).
No caso específico da saúde pública grega, o Governo diminuiu o investimento em 40% nos últimos dois anos, ao mesmo tempo que os centros públicos de assistência sanitária têm recebido um aumento no fluxo de pacientes de mais de 30% por causa do rompimento com os planos privados de saúde. Falta uma mínima estrutura básica nos hospitais públicos como papel higiênico e seringas, não há medicamentos suficiente e o aumento da carga de trabalho dos profissionais de saúde sem o respectivo aumento salarial ocasiona, em média, quatro vezes mais atendimentos e o alargamento do prazo de espera (KENTIKELENIS et al., 2011).
Para resolver esta situação o Governo grego que assumiu recentemente21 teria que ouvir os movimentos sociais e auditar a dívida grega que está consumindo a maioria do orçamento social, principalmente o orçamento sanitário. O caso grego está distante de ser solucionado, evidenciando a dicotomia entre o Sistema da Dívida com a Troika22 e o Sistema de Saúde.
3.3 Necessidades Humanas Básicas Objetivas e Universais
A teoria das necessidades humanas básicas objetivas e universais de Doyal e Gough (2010) será apresentada com o intuito de defender a priorização do orçamento da saúde (frente a outros orçamentos) em relação ao destino dos recursos financeiros auditados por pretenso ato institucional referente à dívida pública.
Diferentemente da Teoria da Hierarquia de Necessidades de Maslow que escalona as necessidades desde as fisiológicas até as de realização pessoal, a Teoria das Necessidades Humanas Básicas de Doyal e Gough (2010) são classificadas em objetivas e universais criticando, desta forma, o individualismo e relativismo propugnados por interpretações liberais.
São objetivas porque são constatáveis de forma empírica de modo exterior ao indivíduo, não confundindo com desejos, aspirações ou preferências individuais e são universais porque a não implementação pode originar um estado de sérios prejuízos23 ao ser humano e esta concepção de sérios prejuízos é válida para qualquer indivíduo, em qualquer parte da Terra, sob quaiquer condições, podendo prejudicar tanto aspectos objetivos (condições materiais) quanto aspectos subjetivos (capacidade de reflexão, senso crítico, e outros) (DOYAL; GOUGH, 2010).
Complementando esta teoria, Doyal e Gough (2010) defendem que só há dois conjuntos de necessidades humanas básicas objetivas e universais: saúde e autonomia.
A saúde é a mais importante dentre as necessidades humanas básicas e direitos sociais pois sua implementação por meio de políticas públicas do Estado é de fundamental importância para que os indivíduos participem de todos os atos da vida em sociedade com pleno vigor físico e psicológico, desta forma, o direito básico à saúde pode ser interpretado como direito à vida (DOYAL; GOUGH, 2010).
Doyal e Gough (2010), assim como Pereira (2011), criticam os mínimos sociais ao afirmarem que as necessidades humanas são básicas, ou seja, não são meramente soluções fisiológicas ou políticas públicas focalizadas como alguns doutrinadores do Direito defendem em relação ao Direito Sanitário com a tese do mínimo existencial24.
Portanto, além de objetiva e universal a saúde é básica, ou seja, integral, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento, a reabilitação e políticas públicas que efetivem seus fatores condicionantes e determinantes (saneamento básico, alimentação, moradia, trabalho, educação e outros).
Com a necessidade humana básica, objetiva e universal da saúde o ser humano alcança o processo de autonomia onde terá capacidade de planejar seus atos e ações, intervindo na realidade de acordo com seus ideias e se responsabilizando sobre eles.
O processo de autonomia não é apenas individualizado, mas principalmente coletivo, onde a participação popular democrática é instrumento para o salto de qualidade de sua consciência como cidadão, onde a ação individual é sempre social. DOYAL, GOUGH, 2010).
A saúde e a autonomia são precondições para a emancipação humana, são necessidades básicas objetivas e universais que devem ser priorizadas por meio de políticas públicas do Estado Democrático de Direito. Dentro destas políticas públicas, o Governo que audita a dívida deve transferir os recursos economizados para o orçamento da saúde, para a efetivação desta necessidade humana básica objetiva e universal (CUNHA, 2011).
Assim, conforme a Teoria da Supremacia Constitucional, os exemplos internacionais que citamos e a Teoria das Necessidades Humanas Básicas Objetivas e Universais, comprovamos que a realização de uma auditoria constitucional de nossa dívida seria uma solução realista e responsável para maior financiamento do direito à saúde universal, integral e igualitário de acordo com os princípios e diretrizes do nosso Sistema Único de Saúde (SUS).
4 – Considerações Finais
O Orçamento Federal brasileiro dedicou, no ano de 2012, aproximadamente 45% para o pagamento de juros e amortizações da dívida e pouco mais de 4 % para a saúde, demonstrando que a prioridade da política econômica é o favorecimento do capital financeiro internacional.
O Brasil realizaou uma auditoria da dívida oficial no Governo Vargas (1930-45) revelando irregularidades e cláusulas abusivas, o que contribuiu para a suspensão e diminuição da dívida pública favorecendo conquistas sociais. Mas nos anos seguintes e, principalmente, durante a ditadura militar, houve um aumento no pagamento de juros e amortizações originando uma reação da sociedade pressionando por meio de Comissões Legislativas até a inserção da constitucionalização da auditoria da dívida em 1988.
No entanto, a dívida, conforme a Constituição, nunca foi auditada, propiciando a criação do movimento social pela Auditoria Cidadã que articula várias demandas em prol do cumprimento constitucional como ações da OAB junto ao STF e nova CPI realizada em 2009 ainda pendente de efetivação.
Em relação ao financiamento da saúde, não foi possível uma estabilidade e segurança jurídica pois não foi efetivado 30 % do Orçamento da Seguridade Social. O imposto provisório (CPMF) que era responsável por 1/3 dos recursos foi extinto em 2007 e a EC 29/2000 foi regulamentada onze anos depois sem contemplar os 10 % da receita corrente bruta da União. Todo este cenário relaciona-se com um investimento público de apenas 45 %, sendo o privado de 55%, caracterizando o Brasil como o único país do mundo de sistema universal onde o investimento privado é maior que o público.
A auditoria da dívida é uma obrigação constitucional. Os recursos financeiros destinados ao pagamento da dívida devem ser revertidos à saúde, seguindo os exemplos internacionais, pois este é um direito universal que deve ser garantido por meio de políticas sociais e econômicas caracterizando-se por ser de relevância pública e necessidade humana básica objetiva e universal.
Portanto, para a efetiva implementação do sistema de saúde universal, integral e igualitário, de acordo com os princípios e diretrizes do SUS, é de fundamental importância a auditoria constitucional da dívida pública brasileira para que os recursos financeiros auditados pelo Estado possam fortalecer o orçamento sanitário. Somente com o cumprimento deste mandamento constitucional pode-se vislumbrar um verdadeiro Estado democrático onde realmente todos terão direito à saúde e ao bem-estar.
NOTAS:
1Artigo atualizado com base no publicado originariamente na Revista Crítica do Direito, nº2, vol.42: http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-2-volume-42/a-vida-ou-a-divida-a-auditoria-constitucional-da-divida-e-o-financiamento-do-direito-a-saude-no-brasil-uma-reflexao-heterodoxa
2Pesquisador colaborador do Programa de Direito Sanitário (PRODISA) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Brasília). Especialista em Direito Sanitário (Fiocruz/Brasília).
3 www.auditoriacidada.org.br
4 Até o momento o relatório encontra-se com o Ministério Público.
5 Com a EC 21/1999 os recursos da CPMF – que antes eram exclusivamente para a saúde – foram compartilhados entre a Previdência e o Fundo de Combate à Pobreza com aumento da alíquota de 0,20 para 0,38% (depois 0,30).
6 Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social.
7 Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
8 A DRU foi renovada até 2015.
9 De acordo com o art. 198, 3º da CF/88.
10 A lei complementar 141/2012 que regulamentou a EC 29 não prevê punição para os entes federativos que não cumprirem os investimentos estipulados.
11 Em virtude do veto, foi criado o Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública que luta por um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para assegurar o repasse efetivo e integral de 10 % das receitas correntes brutas da União para a saúde pública brasileira, o que equivaleria a R$ 40 bilhões anuais no orçamento da saúde. Mais informações em www.saudemaisdez.org.br
12 A União investirá apenas o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB.
13 Organização Mundial da Saúde (OMS, 2008), Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA, 2009), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2009).
14 Esses dados devem ser confrontados atualmente com a situação de crise econômica mundial porque passam esses países, especialmente a Espanha.
15 O investimento privado é bancado majoritariamente pelo consumo das famílias, o que é preocupante numa conjuntura de crise econômica, além de contar com fartas desonerações e isenções fiscais do Estado.
16 Só a título de comparação com países de sistema universal de saúde a Austrália tem investimento público de 67% e a Inglaterra 87% (OMS, 2008).
17 A Comissão – que contou com 18 especialistas – analisou a dívida delimitando o período de 1976 a 2006 constatando o aumento de 1 bilhão para 14 bilhões de dólares (Auditoria Cidadã da Dívida).
18 Conferir Causa 14.467, Alejandro Olmos S/dcia. Expediente n. 7.727, tramitado ante Juzgado Nacional en lo Criminal y Correccional Federal. Sentença de 13 de julho de 2000, conhecida como sentença Olmos.
19 Pejorativo porque a sigla faz referência a porcos, em inglês.
20 Estes argumentos também estão lastreando polos de auditoria da dívida em outros países da Europa como Portugal, Itália, França e Bélgica (www.auditoriacidada.org.br)
21 O conservador Nova Democracia (ND), de Antonis Samaras, venceu as eleições de junho de 2012.
22 FMI, BCE e UE.
23 De acordo com Pereira (2011, p. 67) sérios prejuízos são “impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a possibilidade objetiva de seres humanos de viver física e socialmente em condições de poder expressar a sua capacidade de participação ativa e crítica”.
24 O mínimo existencial surgiu na Alemanha e é defendido no Brasil por juristas como Torres (2008) e Barcellos (2001) com a argumentação de que o Estado não tem recursos para custear a saúde universal, devendo ser implementada de maneira focalizada e mínima como o Programa Saúde da Família (PSF).
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*Texto gentilmente enviado pelo próprio autor