Senado votará na próxima semana PEC 186 que dá calote em direitos sociais e entes federados
O Substitutivo da PEC 186/2019, conhecida como “PEC EMERGENCIAL” foi apresentado na última segunda-feira, 22, pelo senador Márcio Bittar e quase foi votada dois dias depois, apesar de representar uma profunda modificação na Constituição Federal de 1988, transformando-a na constituição do mercado!
A desculpa que vem sendo usada para convencer parlamentares e a opinião pública da “emergência” dessa PEC é a necessidade de pagar o auxílio emergencial, usando assim uma necessidade social premente para desmontar os direitos sociais conquistados desde 1988 e ainda em fase atrasada de implantação efetiva. Ademais, temos recursos de sobra, líquidos, em caixa, mais que suficientes para pagar o auxílio emergencial aos famintos.
Temos quase R$ 5 trilhões na gaveta! R$ 1,289 trilhão na conta única do Tesouro Nacional, R$ 1,836 trilhão em reservas internacionais, R$ 1,393 trilhão de sobra de caixa dos bancos parados no Banco Central rendendo juros somente aos bancos, às custas do povo!
Além disso tivemos superávit de mais de US$ 50 bi na balança comercial em 2020; temos potencial para arrecadar tributos de ricos que não pagam e várias outras fontes de recursos, pois o Brasil é riquíssimo!
Crise fabricada
O que está ocorrendo no Brasil é gravíssimo. A crise fabricada, principalmente pela política monetária do Banco Central em 2014, tem sido usada para justificar o insano teto de gastos (EC-95), contrarreformas (Trabalhista, Previdenciária, Administrativa), a entrega do Banco Central para o mercado financeiro (PLP 19/2019, inconstitucional), privatizações que atingem Petrobras, Eletrobras, Correios, Casa da Moeda, Serpro, Dataprev, entre várias outras empresas estratégicas e lucrativas.
A crise fabricada tem levado milhões de empresas de todos os setores à falência e milhões ao desemprego, aumentando a desigualdade social no Brasil ao mesmo tempo em que seguem elevadíssimos os lucros dos bancos e a brutal concentração de renda e riqueza, que fazem do Brasil um dos países mais injustos do mundo .
A PEC 186 desmonta os direitos sociais e antecipa parte do desmonte do Estado que consta da PEC 32. O mais grave é que sua votação é iminente, cortando direitos em plena pandemia, sem o imprescindível debate público, tendo em vista que parlamentares são representantes do povo, e não podem tomar decisão drástica de modificar o escopo da Constituição sem ouvir a sociedade civil.
“PEC Emergencial” desmonta Direitos Sociais conquistados na Constituição de 1988
O Substitutivo da PEC 186 insere, no Art. 6º da Constituição (CF), um parágrafo único que condiciona a garantia de direitos sociais ao equilíbrio fiscal: “Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.
Com esse dispositivo, todos os direitos sociais previstos no Art. 6º da CF (educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados) ficarão condicionados a um conceito de “equilíbrio fiscal”, isto é, ficarão constitucionalmente subordinados ao pagamento da questionável dívida pública que nunca foi devidamente auditada, como manda a CF.
A grande mídia e analistas conservadores têm usado a expressão “equilíbrio fiscal” como justificativa para cortar investimentos sociais, sendo que a verdadeira causa de desequilíbrio fiscal no país tem sido o exorbitante gasto com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Retrocesso histórico
O Substitutivo da PEC 186 representa um CALOTE à Saúde, Educação e todos os direitos sociais, pois além de colocar o gasto financeiro acima dos direitos sociais previstos no Art. 6º da CF, a proposta acaba com as vinculações (pisos) de recursos para saúde e educação, nas esferas federal, estaduais e municipais, o que é um retrocesso histórico inaceitável!
A PEC 186 representa um calote também aos estados e municípios , pois acaba com o ressarcimento pela União das perdas de estados e municípios com a chamada “Lei Kandir”: lei federal (Lei complementar 87/96) que concedeu isenção de imposto estadual (ICMS) sobre exportações de produtos primários e semi-elaborados, obrigando o governo federal ressarcir estados e municípios dessa perda. Ao longo dos anos, o ressarcimento tem sido historicamente insuficiente e a PEC 186 extingue a possibilidade de reposição dessas perdas, empobrecendo todos os entes federados do país.
Por outro lado, a PEC 186 é permissiva com devedores da Previdência, na medida em que permite que a pessoa jurídica em débito com a Seguridade Social possa contratar com o Poder Público e receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios . Ela acaba também com a destinação de 28% do PIS/PASEP para os financiamentos do BNDES .
“PEC Emergencial” aumenta o privilégio da questionável Dívida Pública
A PEC 186 insere dispositivos que explicitam o privilégio do gasto financeiro com a chamada dívida pública:
“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade”. (…) “A elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida”.
Desigualdade social
Dessa forma, a PEC 186 aumentará a desigualdade social, pois além de condicionar os direitos sociais ao “equilíbrio fiscal”, reforça ainda mais o privilégio da questionável dívida pública, que não tem servido para investimentos, como declarou o próprio Tribunal de Contas da União, mas tem alimentado vários mecanismos financeiros ilegais e ilegítimos. Cabe ressaltar que durante 20 anos produzimos R$ 1 trilhão de superávit primário e este não foi suficiente para controlar o crescimento da dívida, que explodiu de R$ 86 bilhões para R$ 4 trilhões no período, justamente porque a verdadeira causa de desequilíbrio fiscal no país tem sido o exorbitante gasto com os mecanismos do Sistema da Dívida, em especial aqueles operados pelo Banco Central.
Adicionalmente, a PEC 186 permite que sejam feitas operações de crédito para custear despesas correntes, alegando que o país está precisando se endividar para cobrir os gastos com a pandemia, o que é enganoso.
Dívida pública
Na verdade, a autorização para emissão de dívida para custear despesas correntes visa “legalizar” o pagamento de juros da dívida pública com recursos oriundos de novos empréstimos, o que já vem sendo feito de forma inconstitucional, por meio de artifício de CONTABILIZAÇÃO DE JUROS COMO SE FOSSE AMORTIZAÇÃO, denunciado a Auditoria Cidadã da Dívida desde a CPI da Dívida em 2009/2010.
O Substitutivo da PEC 186 privilegia mais uma vez o pagamento da dívida ao permitir que recursos disponíveis na Conta Única do Tesouro (o chamado “superávit financeiro”) sejam destinados para o pagamento da dívida pública, ainda que tenham vinculação com determinado investimento social.
“PEC Emergencial” antecipa parte do desmonte do Estado contido na PEC 32 e acarretará congelamento de carreiras, reajustes a servidores, salário-mínimo e benefícios previdenciários.
O Substitutivo também prevê que, caso a relação entre despesas correntes e receitas correntes supere 95%, no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, será acionado um gatilho que faculta aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública do ente, vedar, por exemplo:
– a concessão de qualquer aumento, vantagem, criação de cargos, planos de carreira, entre vários direitos devidos aos servidores públicos;
– qualquer aumento de despesa obrigatória;
– o aumento real do salário-mínimo ou benefícios previdenciários;
– criação ou expansão de programas de linhas de financiamento, que poderiam estimular o funcionamento da economia.
“PEC Emergencial” prorroga o “orçamento de guerra”
Na tentativa de gerar um argumento a favor da PEC, o relator inseriu a continuidade do chamado “orçamento de guerra”, permitindo que gastos relacionados à pandemia (principalmente o “Auxílio Emergencial”) fiquem dispensados da observância das limitações quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa.
Porém, parlamentares e sociedade em geral não podem se deixar enganar por este dispositivo, que na verdade deveria existir para todos os investimentos sociais há muito tempo, e sua aprovação não deveria estar condicionada ao desmonte dos direitos sociais inseridos na Constituição de 88, nitidamente para que sobrem mais recursos ainda para os gastos financeiros com a chamada dívida pública, cada vez mais obscura e injustificável, cuja auditoria, com participação social, é urgente e necessária!
*Maria Lúcia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e integra a Comissão Brasileira Justiça e Paz, organismo da CNBB. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.